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Atenas ou Jerusalém? A controvérsia entre fé e razão na era medieval

Como vimos no primeiro post sobre fé e razão na era medieval, é nessa época que começamos a ver a batalha entre esses dois conceitos (e práticas) na tradição cristã e islâmica. Como falei no finalzinho daquele post, quero apresentá-los aos primeiros protagonistas dessa batalha: Justino, o Mártir, Clemente de Alexandria e Tertuliano.

Justino, o Mártir, quando jovem, tentou encontrar sabedoria e a verdade em diversas filosofias. Tentou estoicismo, aristotelianismo, pitagorismo, entre outros, sem porém encontrar qualquer satisfação. Ele finalmente foi atraído à filosofia de Platão, que teve um impacto duradouro em seu pensamento. Quando ele encontrou o cristianismo, ele percebeu que o platonismo perdia feio. Ele se converteu ao cristianismo e começou a defender sua nova fé por onde passava e em 165 A.D. morreu como mártir.

Justino era extremamente otimista quanto à harmonia entre o cristianismo e a filosofia grega. Para ele, as duas ideias não competiam, mas apontavam para uma mesma verdade:

- Platão e a Bíblia apontavam para o fato que nossa alma tem uma afinidade especial com Deus;

- Platão e a Bíblia mostram que somos moralmente responsáveis por nossas ações;

- Platão e a Bíblia falavam de um tempo de julgamento no mundo por vir;

- A forma do Bem na República de Platão claramente era a mesma coisa que o Deus da Bíblia;

Ele tinha tanta certeza dessas semelhanças que chegou a dizer que Platão teve acesso ao Pentateuco durante sua vida e baseou muitas de suas ideias nele. De acordo com ele, Socrates e Platão, juntamente com Abraão, eram "cristãos antes de Cristo" porque eles seguiam a razão divina dentro deles. Além disso, esses filósofos gregos prepararam o caminho para o cristianismo, abrindo o coração e a mente das pessoas para o que viria.

Vamos agora para o próximo contender, mas calma: esse ainda é amiguinho de Justino!

Clemente de Alexandria nasceu pagão e se tornou um cristão de extrema influência no segundo século. Ele, como Justino, tinha um espírito muito ecumênico quanto à filosofia grega, inclusive até o ponto de citar os filósofos abundantemente ao defender algumas ideias cristãs. Em sua obra O Stromata, ele chega a citar Salmos 29:3, "O Senhor está sobre muitas águas" para defender que devemos respeitar as ideias dos filósofos gregos. Toda a verdade, ele diz, é uma só e toda a sabedoria vem do Senhor. Se achamos sabedoria nas obras de Platão, então só pode ter vindo de Deus.

Para Clemente de Alexandria, era simples: para quê reinventar a roda? Se Platão tem bons argumentos para o dualismo (existência da alma, algo que Clemente de Alexandria acreditava), então por que não usar os argumentos dele? A filosofia, de acordo com Clemente, pode até nos ajudar a entender melhor a Bíblia!

Apesar de tudo isso, ele também é bem claro que a filosofia grega não contém toda a verdade e que não devemos ficar muito tempo debatendo assuntos irrelevantes na filosofia. Aqui está um resumo de sua ideia:

A filosofia não é, portanto, um produto do vício, já que ela produz homens virtuosos; segue, então, que ela é o trabalho de Deus, cuja obra é somente fazer o bem. E todas as coisas dadas por Deus são dadas e recebidas bem.

Agora vamos para o outro lado do ringue.

Nem todos os cristãos foram otimistas quanto ao casamento entre a fé e a razão, entre a teologia e a filosofia, ou, nas palavras de Tertuliano, entre Atenas e Jerusalém.

Tertuliano também foi convertido ao cristianismo depois de adulto e tornou-se um famoso defensor e estudioso do cristianismo. Mas, diferente de Justino e Clemente, ele apenas cautelosamente admitia que os filósofos tinham ocasionalmente encontrado uma verdade, dizendo que estes instantes tinham sido mera coincidência. Fora isso, ele via pouquíssima validade e utilidade na filosofia. Para ele, a revelação bíblica era mais que suficiente e, mais do que isso, levaria a heresias na igreja. Sua passagem mais famosa contra o uso da filosofia é esta:

O que tem Atenas a ver com Jerusalém? Que acordo existe entre hereges e cristãos?...Fora com todas as tentativas de produzir um cristianismo manchado de composições estóicas, platônicas, e dialéticas! Nós não queremos curiosas disputas após possuir Jesus Cristo, não queremos investigação depois de usufruir do evangelho! Com nossa fé, nós desejamos nenhuma outra crença. Pois essa é nossa [vitoriosa] fé, que não há nada que devemos crer além disso.

Assim como Atenas (o centro intelectual da filosofia) e Jerusalém (o lar espiritual do cristianismo) eram longe pra chuchu um do outro, assim a filosofia pagã e evangelho cristão estavam longe pra chuchu um do outro e não devem nunca se encontrar.

Bom, seja de qual ideia você seja partidário (quem sabe ter lido até aqui num blog sobre filosofia da religião já responda isso!), não fosse a influência da filosofia nós teríamos uma era medieval bem diferente do que tivemos! E como você irá perceber, bem menos interessante.

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