top of page

O pagão pode ser bom?

O relacionamento orientador-orientando em um programa de doutorado é complexo. Ao mesmo tempo que você quer manter uma amizade (afinal, serão pelo menos 5 anos de convivência!), é necessário que o orientador exija o melhor de seu orientando.

David Decosimo é o nome do meu orientador e o autor do livro que li semana passada. É um acadêmico exemplar e um professor fenomenal. O nosso relacionamento, porém, ainda não está perfeitamente definido. Ora ele me elogia por um bom desempenho no programa e me leva para almoçar com conversas agradáveis, ora ele me manda e-mails quilométricos com críticas avassaladoras que fazem com que o meu marido pense que vou morrer desidratada de tanto chorar! Mas...o que mais eu poderia esperar da vida acadêmica?!

É vergonhoso que eu não o tenha lido esse livro antes de iniciar o programa, mas a realidade é que eu estava tão focada em conseguir entrar em algum programa que os feitos literários dos professores dos programas não estavam no topo da minha lista de prioridade. Agora que tenho mais tempo para ler, esse item foi para o topo!

Vamos ao livro.

Cristãos desde Agostinho (na verdade, desde os apóstolos!) se questionam se é possível que pagãos (não-cristãos) tenham a capacidade de terem virtudes sem a influência da graça de Cristo. Esse questionamento é de cunho lógico uma vez que os cristãos acreditam que tudo o que existe de bom vem de Deus, a fonte de toda a bondade. Se apenas o cristão convertido recebe o poder do Espírito Santo e a sua atuação para produzir virtudes morais, o pagão não pode ser "verdadeiramente" bom. Suas virtudes devem, portanto, ser "paraguaias", falsificadas ou, no mínimo, extremamente imperfeitas.

Com esse dilema em mente, David Decosimo recorre a Tomás de Aquino para livrar-nos desse "pepino" crente. Aquino é uma figura fascinante para estudar e esse assunto em particular é importantíssimo para ele. Isso porque Aquino tinha duas *gigantes* influências na teologia e filosofia dele: Santo Agostinho e Aristóteles. Qual o problema de ser seguidor dessas duas pessoas ao mesmo tempo? Um era cristão e um era pagão. Então, para Aquino, a tarefa de validar as virtudes de Agostinho era de suma importância. Se Aquino queria usar as ideias de Aristóteles, era necessário que ele fosse uma pessoa virtuosa.

O grande desafio de Decosimo nesse livro é explicar porque Aquino parece brincar em uma gangorra em seus escritos: ora ele diz que as virtudes dos pagãos (sem a graça de Deus) são imperfeitas e nem mesmo verdadeiras, ora ele diz que seres humanos podem desenvolver virtudes morais sem graça. O pior é que muitas vezes essas duas afirmações são feitas no mesmo parágrafo! Mas Decosimo faz por merecer. Ele destrincha cada texto relevante ao assunto, analisando o uso do latim e levando em consideração outras ideias de Aquino.

Um resumo bem resumido é que Aquino faz uma diferenciação entre "virtude adquirida" e "virtude infundida", a primeira sendo as virtudes naturais desenvolvidas pelo hábito (sem necessidade de graça) e a segunda sendo a virtude somente possível através da graça de Deus. Para Aquino, a virtude adquirida é virtude no mais pleno sentido da palavra, e pagãos podem tê-la. Já a virtude infundida é a virtude mais perfeita, não disponível para pagãos. Apesar de a virtude adquirida ser imperfeita no sentido de incompleta, ela ainda assim pode produzir uma vida bela com bondade e verdade porque, no final das contas, ela também é dada por Deus apesar de não ser requisitada para Deus. Essa virtude ainda é digna de admiração (da forma como Aquino admirava Aristóteles) e até mesmo celebração.

A diferença mais importante que Decosimo nota entre essas duas virtudes é o fim que elas buscam. Para Aquino a virtude adquirida é inferior ou incompleta porque o fim que ela busca não é Deus, apesar de poder ser um fim bom (ex.: alimentar as crianças carentes). Se o fim da virtude adquirida é bom, ele participa no fim mais perfeito: Deus. Assim, apesar de ela não ser perfeita, a virtude adquirida é verdadeira. No capítulo 8, Decosimo traz uma discussão fascinante sobre a possível solução de Aquino quando existe mais de um fim para uma ação virtuosa (um bom e um ruim), mas não vou entediar vocês com mais detalhes. Já sabem o que fazer se bater aquela curiosidade!

Para Decosimo, no final das contas, Aquino não precisa comprometer sua identidade cristã para ser acolhedor aos 'de fora'; na verdade, é justamente seu cristianismo que o impele a fazê-lo. Aquino achava que "procurar e encontrar o bem em outros requer não somente mais e melhores distinções do que o simples binário 'de dentro'/'de fora', mas que, em nossos relacionamentos, o que quer que divida, sejamos lentos em julgamentos negativos e prontos a fazer a distinção que, sem mentiras, encontra o belo que está lá para ser encontrado." (p. 268)

"Dar as boas vindas à virtude do 'de fora' é dar as boas vindas ao trabalho e presença da Palavra dentro e através de quem todas as coisas são feitas e feitas novas. É contemplar, como através de um vidro escuro, outra não menos gloriosa, não menos maravilhosa, face da graça." (p. 272)

Featured Review
Tag Cloud
bottom of page