Como construir um bom argumento - Parte 1
A situação é inevitável.
Você senta para conversar com um amigo para o que parece ser uma conversa completamente informal e tranquila. Até que, do nada, seu amigo começa a conversar sobre assuntos mais polêmicos. Quando você menos espera, ele (a) começa a elaborar o argumento que ele (a) considera absolutamente convincente para a posição que tem.
Nesse momento, você começa a sentir algo diferente. Tem alguma coisa nesse argumento que seu amigo (a) está usando que faz você pensar que tem algo errado. Alguma coisa no argumento não faz muito sentido, mas quem sabe você não consiga distinguir bem o que é.
Pode ser na mesa de jantar com o tio que já bebeu alguns copos de cerveja.
Na sala de aula com um colega implicante.
No noticiário ou programa político.
Na parada para almoço com um colega de trabalho que insiste em pedir sua opinião quando você está com a boca cheia.
Seja quando ou em quais circunstâncias, em algum momento da vida você percebe a necessidade de reconhecer maus argumentos e também como construir bons argumentos para defender aquilo que acredita. Aqui nós vamos começar pela primeira necessidade. Aquela sensação, quando você sabe que tem algo estranho no argumento mas não sabe exatamente o que é, muito provavelmente acontece porque você detectou uma falácia no argumento. E pode ter quase certeza que um péssimo argumento envolverá a existência de alguma falácia. Na verdade, TODOS os filósofos da história estavam tentando "corrigir" as presunções apressadas, ou falaciosas, dos filósofos anteriores e dizendo que o argumento deles, sim, é que era bom.
Então aqui vamos, de forma resumida, passar pelas falácias mais repetidas em argumentos. Se você mantiver essas falácias em mente quando estiver discutindo filosofia (ou qualquer outro assunto!), você será muito menos susceptível a maus argumentos e ainda por cima, poderá construir argumentos muito mais sólidos. A realidade é que existem MUITAS falácias, e eu só conseguirei mencionar algumas delas.
Em algumas falácias descritas a seguir, vou colocar algum exemplo que tenha a ver com o conteúdo principal desse blog: filosofia da religião.
1 - Apelo às Consequências
Esta falácia é muito comum. Consiste em falar que algo é verdadeiro ou falso ao dizer o quanto gosta das consequências que surgirão caso seja, de fato, verdadeiro ou falso. O problema dessa falácia é que só porque alguém quer que algo seja verdade porque as consequências são boas, não quer dizer que será verdade. Da mesma forma, só porque as consequências de algo ser falso são péssimas, não quer dizer que seja falso.
Um exemplo muito comum na defesa da existência de Deus:
"Se Deus não existisse, o que aconteceria com o mundo? Tudo seria permitido, até as coisas mais horríveis! Eu não quero viver em um mundo em que Deus não existisse, então eu acredito que Deus existe."
Deixando de lado todos os argumentos morais em favor da existência de Deus, este argumento ainda é falacioso. Não é porque eu não quero viver em um mundo em que crianças não morram de fome que milagrosamente surgirá um prato de comida na mesa de todas as crianças famintas.
2- Afirmar a consequência
Essa falácia é uma modificação de um argumento formal válido. Vamos ver em outro post o que é um argumento válido. Por enquanto, basta você saber que afirmar a consequência acontece quando você sabe que se algo X acontecesse, haveria uma consequência Y. Quando você vê a consequência Y, você assume que X aconteceu. Um exemplo será mais útil:
"Se você estivesse me traindo, você definitivamente voltaria atrasado do trabalho. Já que você chegou atrasado do trabalho, então você está me traindo!" Existem muitas opções do que poderia ter acontecido para seu marido chegar atrasado do trabalho que não são traições. O problema com essa falácia é que a primeira afirmação pode até ser verdadeira, mas isso não quer dizer que a conclusão que você tirou é verdadeira. Para trazer para a filosofia da religião, você pode argumentar para um amigo "Se Deus existisse, haveria uma certa harmonia e organização na natureza. Como nós vemos essas coisas ao nosso redor, tem que ser verdade que Deus existe."
Apesar de a primeira frase ser verdade, isso não produz uma necessidade na conclusão da segunda frase.
3 - Apelo à ignorância
Essa falácia assume que algo é verdade simplesmente porque não existe evidência de que não seja verdade. Um exemplo muito comum entre aqueles que acreditam em Deus,
"Não existe evidência de que Deus não existe, portanto Ele deve existir!"
Uma espécie dessa falácia é a da incredulidade pessoal: "Você acha que os egípcios construíram a pirâmide? Já pensou? Onde você já viu seres humanos levando milhões de pedras pesando muitas toneladas e construir algo daquele tipo? Não podem ter feito isso!"
Nessa falácia, o que a pessoa sente que não pode ser verdade julgando por sua própria experiência não pode ser verdade. É importante fazer uma distinção: não há nada de errado em questionar a história, mas se a única base para essa dúvida é que intuitivamente não faz sentido, não quer dizer que não seja verdade.
4 - Bola de Neve
A falácia da bola de neve é usada quando alguém quer dizer que uma posição é errada por que a aceitação dela vai trazer uma sequência terrível de eventos. Normalmente, essa falácia é utilizada quando a pessoa quer colocar medo na audiência. Por exemplo,
"Você quer aprovar o casamento gay no senado? Sabe o que vai acontecer se aprovarmos? Agora aprovamos isso, daqui a pouco tempo estaremos aceitando casamento entre pais e filhos, depois entre humanos e animais. É assim que vai ser! É isso que você quer??"
O objetivo dessa falácia é tirar a discussão principal do foco, levar até uma consequência terrível e pedir para a pessoa defender essa consequência terrível.
5 - Espantalho
A falácia do Espantalho aparece principalmente quando você está ganhando um argumento. Então fique atento!
A pessoa com quem você está argumentando pega o seu argumento e cria uma versão caricaturada para então começa a atacar essa versão totalmente diferente, que não é o seu argumento! Fazer isso faz com que seja mais fácil para eles lidarem com o argumento, pois a versão caricaturada é mais fácil de refutar. A esperança deles é que ninguém vá se dar conta que não é o argumento certo.
"Eu acredito em Deus."
"O que? Você acredita que tem um cara velho de barba que fica no céu só nos olhando o tempo todo? Nossa cara! Que absurdo!"
"Eu não concordo que devemos gastar R$600 milhões em transporte público todos os anos"
"Eu não acredito, você prefere deixar as pessoas caminhando no barro por dezenas de quilômetros para fazer o que elas precisam fazer. Você não tem coração mesmo!"
6 - Ad hominem
Ao usar esta falácia, a pessoa, ao invés de se concentrar no argumento em si, tira o foco do argumento atacando pessoalmente. Essa também é uma falácia muito utilizada quando você está ganhando um argumento.
"Eu não acho que você deveria dar leite condensado para seu bebê recém nascido"
"Sério? Isso vindo de alguém que nunca teve filhos e que detesta criança?"
Essa quem sabe seja a falácia mais comum e a mais fácil de identificar. A pessoa não consegue pensar em motivos para desacreditar o seu argumento então coloca dúvidas na fonte do argumento: você.
"Eu acho que Deus não existe"
"Ah é, então você é igual aqueles ateus odiosos e violentos. Você é praticamente um Pol Pot!"
Se você desacredita a fonte de um argumento, você pode ignorar o argumento e continuar acreditando no que você acredita.
Esta foram algumas falácias para vocês analisarem e verificarem se não fazem uso delas de vez em quando também! Mais para frente farei a parte 2 para analisar mais algumas.
Leia mais:
Obviamente, as ilustrações não são de minha autoria. Existe um fantástico livretinho disponível na internet traduzido para o português com a maioria das falácias com ilustrações. É uma leitura rápida e gostosa: https://bookofbadarguments.com/pt-br/
Patrick Hurley, A Concise Introduction to Logic.