Agostinho: A filosofia a serviço da fé
"Pensa em tudo o que crê. Porque a fé, se não se pensa no que crê, é nula."
Se fosse para dar o nome de apenas um filósofo cujas ideias foram mais influentes para o cristianismo do que qualquer outro, eu (e acredito que muitas outras pessoas) teriam que dizer o nome de Aurelius Agostinho, filósofo e teólogo do quarto século. Na verdade, entender as ideias dele faz com que você entenda melhor os pensadores da idade média e muitas doutrinas cristãs modernas!
Nota: Uma recomendação de leitura um pouco fora de suas ideias teológicas e filosóficas (apesar de não totalmente) é sua clássica obra autobiográfica: Confissões. Eu li esse livro um pouco mais de um ano atrás e várias ideias e citações não saíram mais da minha cabeça. Recomendo sem reservas! Atenção: a primeira parte do livro vai prender muito mais a sua atenção do que a segunda parte, mas todo ele vai ser de grande valia para você independentemente das suas crenças pessoais!
Vou deixar que você leia esse livro para entender a história pessoal desse homem. É interessante demais para resumir em um parágrafo. Em vez disso, vamos direto ao que nos interessa: suas ideias e influência na filosofia da religião. Não tem como eu colocar aqui todo o vasto número de tópicos sobre os quais Agostinho teve influência, mas aqui vão alguns.
Antes, vale lembrar algo importante. Como escrevi no post sobre a batalha entre razão e fé, a era medieval foi a que trouxe à tona o problema de depender ideias teológicas em ideias filosóficas dos gregos. Agostinho foi fortemente influenciado pelo pensamento grego, como iremos ver, e não tinha vergonha de admiti-lo já que ele cria que os platonistas tinham sido aqueles que mais tinham chegado perto do cristianismo (Cidade de Deus 8.5). Entretanto, ao mesmo tempo ele cria na autoridade suprema da Bíblia como base de todas as crenças e na razão como subordinada à fé. Ele argumentou que não existe um questionamento puramente filosófico. Na verdade todas as ideias filosóficas são obstáculos ou veículos na jornada para a vida eterna e por isso nada no nosso mundo pode ser compreendido perfeitamente à parte de uma perspectiva religiosa.
1. Primazia da vontade
Agostinho imaginava que tudo no universo, desde as decisões e ações de Deus, até as dos seres humanos, eram manifestações da livre vontade deles. Tudo o que Deus e os seres humanos fazem são resultado dessa livre vontade. E o que determina a vontade? Nada! O livre-arbítrio é, de fato, totalmente livre.
2. O amor motiva toda a ação
Para Agostinho, a vontade é guiada na direção daquilo que ela escolhe amar. Como um objeto físico é puxado em direção ao centro da terra, assim cada um de nós é puxado pelas afeições do nosso coração, que estão no centro de nossa vida.
3. Pecado original
Algo fascinante de notar ao estudar o pensamento de Agostinho é que todas as ideias estão basicamente interligadas. A doutrina do pecado original rege muito daquilo que Agostinho diz sobre a vontade do ser humano e as tendências do amor. Em poucas palavras, Agostinho acreditava que desde a desobediência de Adão e Eva, a raça humana tem caído em um espiral de pecado. Todos herdam o pecado original e são infectados e corrompidos por tal pecado. Consequentemente, nossa vontade e nosso amor se direcionam para longe de Deus, na direção errada. Nós temos a tendência de amar nós mesmos ou as coisas passageiras do mundo. Isso não só afeta nossa vida moral, mas afeta também nossa busca por conhecimento. Poderíamos dizer, então, que o pecado original faz parte integral da epistemologia (teoria do conhecimento) de Agostinho.
4. Dualismo
Quem sabe uma das heranças mais famosas de Agostinho para o cristianismo é seu dualismo entre alma e corpo. Agostinho concorda com Platão que os sentidos físicos não são os únicos a nos dar conhecimento (visão, olfato, toque, etc). Para ele, existem dois tipos de conhecimento diferentes: aquele que é adquirido pelos sentidos corporais e aquele que é adquirido no interior de cada pessoa. Ou seja, a alma pode alcançar conhecimento não-físico e eterno, e estas são as verdades mais nobres. Ele usa o exemplo das verdades matemáticas para mostrar que existem verdades que não podem ser vistas, mas podem ser adquiridas pelo intelecto sozinho. Assim também são as verdades éticas e espirituais.
5. Presciência divina e livre-arbítrio humano
O famoso dilema monoteísta entre a presciência divina e o livre-arbítrio humano é que, se Deus conhece todas as coisas (inclusive todas as ações humanas do futuro), como é que podemos ser coerentes em dizer que o ser humano tem livre-arbítrio?
Agostinho achou uma solução para este problema ao dar uma análise da relação de Deus com o tempo. Para ele, Deus criou o tempo mas não existe no tempo. O tempo é meramente a forma como nós experimentamos o mundo. Assim, todos os momentos dentro do tempo são conhecidos por Deus como um momento eterno no presente.
Como isso resolveria o problema do livre-arbítrio? Já que Deus não está no tempo e Ele vê tudo como presente, Ele não está forçando nenhuma ação futura, Ele apenas a conhece. Desta forma, você é livre para fazer outra ação qualquer. Apesar de isso aparentemente resolver um pouco do problema, se você ler as Confissões, você irá ver que ele acredita fortemente na intervenção divina na vida dele e de todos os seres humanos. O que deixa tudo um pouco confuso! Mais sobre isso no futuro!
6. O problema do sofrimento
Agostinho foi um dos primeiros filósofos cristãos a lidar com o problema do sofrimento. Em poucas palavras: se Deus é todo bondoso, todo poderoso e onisciente, por que o ser humano sofre? (um assunto que ainda vai dar em muuuuitos posts)
Para Agostinho, uma vez que tudo o que Deus criou é bom, então o mal tem que ser algum tipo de defeito ou corrupção. Então, ele elaborou basicamente três respostas para o problema do mal. Primeiro, enquanto algumas coisas podem parecer más para nós, elas na verdade são instrumentos para chegarmos ao bem (pense em um bebê que chora ao tomar vacinas). Segundo, o mal não é uma realidade independente, mas um tipo de privação de algo (escuridão como sendo a falta de luz). Terceiro, o problema do mal é culpa da perversidade humana (maldade moral). Essa última resposta tem a ver com a segunda, já que a maldade moral do ser humano é uma privação do amor a Deus e às coisas boas.
É isso por hoje, amigos! Agradeça (ou não) Agostinho por obras fantásticas e por ideias (mesmo que você não concorde) lúcidas e relevantes até hoje!
P.S. Não esqueça...leia "Confissões"!
Leia Mais:
Agostinho, Confissões.
Agostinho, A Cidade de Deus.
Agostinho, Obras Seletas.