Boécio: o filósofo com a pior tradução de nome da história
Tem algumas traduções de nomes que eu vou te contar, viu! Boécio...
Bem, o nome dele em latim fica bem mais bonito: Boethius.
Esse é o nome da figura que vamos conhecer um pouco melhor hoje.
O início da Idade Média não foi nada fácil para a área que chamamos de "humanas" hoje. A arte, a filosofia, a educação foram deixados em segundo plano com a terrível queda do Império Romano. Na verdade, o termo 'Idade Média' é um termo depreciativo dado por pensadores da renascença que diziam que o período entre o clássico e o renascimento foi um intervalo infortuno de escuridão intelectual. Hoje já sabemos que, na verdade, foi o início da Idade Média que teve esse período de escuridão. Como veremos mais pra frente, o período médio e final da Idade Média é onde encontramos uma penca de luz intelectual!
Mesmo em meio à escuridão cultural e intelectual, Boécio (sério, ainda tá difícil escrever esse nome sem fazer um movimento involuntário no rosto) foi uma grande luz de inspiração filosófica.
Meu encontro com seu livro mais famoso, A Consolação da Filosofia, foi dentro do meu carro. Não tive a oportunidade de lê-lo, mas de ouvi-lo. Um tempo atrás eu tinha que fazer uma viagem longa de carro e decidi escutar o áudio do livro (um total de apenas 5 horas de áudio). Ás vezes eu quase me perdia na estrada de tão longe que seus pensamentos me levavam. Nem preciso dizer que a viagem passou muito rápido.
Seriamente recomendo esse livro. Principalmente se você, assim como Boécio, está passando por um momento de muitas provações na vida pessoal. Boécio escreveu esse livro durante o ano em que ele passou na prisão e é literalmente sobre a consolação que a filosofia traz.
Mais importante que o livro dele, porém, está a influência que ele deixou por causa de suas traduções e comentários de obras da filosofia grega para o latim. Acho que posso dizer que a filosofia da Idade Média não seria a mesma sem as traduções que Boécio fez, principalmente as traduções dos livros de lógica de Aristóteles (se você quer saber que lógica é essa que influenciou o mundo filosófico, leia aqui). Assim ele concedeu aos filósofos do futuro os termos, definições e distinções que seriam fundamentais.
A história de Boécio e o motivo dele ter acabado na prisão e depois ter sido sentenciado a morte é interessante, mas não quero me delongar nisso (você pode ler sobre isso nesse curto artigo sobre ele, aqui). O mais importante para nós é o legado filosófico dele em seu livro. A consolação da filosofia é um diálogo entre Boécio e a Filosofia, que é personificada como uma majestosa e ao mesmo tempo querida mulher. A conversa deles lida com o problema do sofrimento injusto (por que pessoas inocentes sofrem enquanto os maus prosperam? - perguntinha antiga, né?). A resposta que ele encontra é profundamente inspirada nos filósofos gregos: a felicidade não vem de fortuna externa como honra, fama, dinheiro ou prazeres, mas deve ser encontrada além desse mundo (Boécio era cristão) e somente é acessível aos que tem virtude.
Uma das partes mais fascinantes do livro é a discussão que os dois tem sobre a liberdade do ser humano e a providência divina. Nós já vimos um pouco sobre isso quando vimos a luta que Agostinho teve com esse assunto. Todo o problema se resume em duas premissas:
(1) A ação do ser humano é livre.
(2) Deus sabe tudo o que faremos antes de acontecer.
A solução de Boécio se tornou a clássica solução para o problema na Idade Média (até hoje é um argumento válido dentro da filosofia da religião): não pode haver qualquer presciência infalível de ações livres porque elas ainda não foram decididas; porém, o relacionamento de Deus com o tempo é diferente do nosso. Ele não existe no tempo, mas experimenta o passado, presente e futuro como momentos simultâneos em seu eterno presente. Assim, as ações que você fará no futuro já são presente para ele, e na opinião dele, elas são livres. Assim como o nosso conhecimento de que o sol está raiando não determina-o, assim o conhecimento atemporal de Deus de nossas ações livres não as determina.
Apesar de os falantes da língua portuguesa terem tentado derrubá-lo com uma tradução horrenda de seu nome, esse homem deixou um legado fantástico.
Por esse motivo, lhe desafio a colocar o nome do seu próximo filho de Boécio.
Leia mais:
Boécio, Sobre a Consolação da Filosofia.